A actriz da Escrava Isaura é activista ambiental no Brasil há décadas.
Amiga do líder assassinado Chico Mendes, fez uma peça sobre ele. Em Setembro,
Lucélia Santos veio a Lisboa, ao Festival Todos. Na memória de tantos, ela será sempre a Escrava Isaura, da telenovela
brasileira homónima que fascinou Portugal no ano de 1978 — e continuou, desde
então, a fascinar o mundo inteiro. Adaptação do romance de Bernardo Guimarães,
a novela que conta o drama de Isaura, uma escrava branca no Brasil do século
XIX, foi vista em mais de 100 países, tendo sido a primeira exibida na ex-União
Soviética e levando, inclusivamente, à decisão de Fidel Castro de suspender o
racionamento de energia em Cuba à hora da transmissão e a uma trégua nos
combates na guerra da Bósnia, em 1995, para que as pessoas pudessem ver o
último episódio.
Mas Lucélia Santos, a actriz que encarnou Isaura nos anos 1970, tem uma
carreira muitíssimo mais vasta (é, por exemplo, a maior intérprete no cinema da
obra do escritor Nelson Rodrigues) e é uma importante activista da causa
ambiental no Brasil há muitas décadas. Foi uma das fundadoras do Partido Verde
brasileiro e tornou-se amiga de Chico Mendes, o seringueiro de Xapuri, grande
rosto da luta em defesa da floresta, assassinado em 1988.
É a partir de Chico Mendes, e de uma entrevista que lhe fez poucos
meses antes de morrer, que Lucélia Santos construiu o espectáculo Vozes da
Floresta, actualmente em digressão pelo Brasil. O Festival Todos, que se
realiza em Lisboa, com epicentro no bairro de Arroios, entre 12 e 14 de Setembro,
planeia trazer o espectáculo a Portugal em 2026, mas, para já, este ano, traz
Lucélia Santos para uma conversa sobre a luta em defesa da floresta brasileira
(próximo dia 13, Biblioteca da Escola Secundária de Camões). O Ípsilon falou
com a actriz, por videochamada, no final de Julho.
Como é que se tornou uma militante da causa da Amazónia e como é que
conheceu Chico Mendes?
Eu sou militante há muitos anos. O Chico, eu conheci há 40, mas desde a
minha infância que eu tinha sensibilidade para estas questões. Na verdade, o
que me chamou a atenção para um certo desequilíbrio da humanidade foram as
questões sociais.
O Brasil estava vivendo uma ditadura militar no início dos anos 1980.
Eu era menina e acompanhava com curiosidade, percebia algo de errado. Tinha
parada militar na porta da casa dos meus pais, em Santo André [área
metropolitana de São Paulo], onde vivíamos, que era uma zona operária. O meu
pai era operário. E eu percebia que havia uma coisa profundamente fora do lugar
na sociedade brasileira. Não tinha uma visão do mundo, mas tinha uma visão do
local onde vivia e era inconformada porque a minha sensibilidade me apontava
que aquilo ali era esquecido. Comecei a observar todos os desníveis sociais. O meu trabalho neste momento: defender o legado do Chico [Mendes]

Depois fui para o teatro, estreei-me muito nova, a minha vida foi toda
muito precoce. Aos 14, 15 anos, eu já tinha identificado que o teatro era o meu
lugar e que ali eu teria a minha forma de comunicação, que ali eu iria
conseguir falar com os outros. Naquela época, as pessoas viravam hippies ou
presos políticos, e o resto da sociedade omitia-se, tinha medo.
Aos 17 anos, mudei-me para o Rio de Janeiro e tinha uma moça amiga que
era mulher de um preso político e eu comecei a acompanhar a vida dela, a ir ao
presídio com ela. Houve uma greve de fome para pedir clemência para os presos
políticos que estavam na Ilha Grande e trazê-los para o Rio de Janeiro. Eu participei
nisso e nunca mais parei como militante. Juntei-me à Amnistia Internacional e
trabalhei intensamente até que, finalmente, a gente obteve a libertação dos
presos políticos do Brasil.
Eu, que já era popular por causa das novelas na TV Globo, conheci muita
gente, Herbert Daniel, Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, abri a minha casa para
essas reuniões, aqui nós fundámos o Partido Verde, e foi isso que me levou ao
Chico.
Eu era vice-presidente do partido e o Chico veio ao Rio — isso está na
minha peça — a convite do Sirkis para falar das reservas extractivistas da
Amazónia no Acre e convidou-me para ir ao Acre dar um apoio a ele para a
candidatura à reeleição no Sindicato dos Trabalhadores do Xapuri. Fui ajudar,
mas também com a missão de o convencer a ser candidato pelo Partido Verde.
Lá chegando, percebi que o Chico estava correndo perigo de vida.
Percebi assim que pisei no Acre que ele estava ameaçado de morte. Isso foi Maio
de 1988. Em Dezembro, seis meses depois, ele foi assassinado.
Ele já tinha avisado que estava a ser ameaçado, mas não teve a
protecção necessária.
Essa região é faroeste, sempre foi. Os assassinos estavam armados e
rondando o Chico, prontos para o matar a qualquer momento. Eu fui ao governador
da época, pedi protecção para o Chico e ele deu alguns soldados que ficaram com
ele.
Ele adorava jogar dominó e estava jogando com o segurança quando foi
assassinado. O segurança parou para ir jantar às seis da tarde e ele aproveitou
para tomar um banho. Os banheiros lá são fora da casa, na floresta, e ele saiu
pela trilhazinha que levava ao chuveiro, o cara estava ali e baleou-o. Tinha
segurança, mas não funcionou.
Lucélia Santos: “A floresta vai parar de respirar, ela vai morrer, e
isto não é alarmismo”
O meu trabalho era sensibilizar a imprensa para torná-lo mais conhecido
no Brasil. Ele já era bastante conhecido fora, já tinha ganho prémios
importantíssimos em Inglaterra, nos EUA, mas era pouco conhecido dentro do
país. Quando foi assassinado, teve mais repercussão imediata lá fora, capa do
New York Times, do Herald Tribune. Dias depois é que os jornais brasileiros
importantes deram. Custou a cair a ficha. Mas a imprensa aqui é muito
conservadora, até hoje.
Na peça, utiliza uma longa entrevista com Chico Mendes que durante
muitos anos a Lucélia não teve coragem de ouvir. Como é que as palavras dele
ecoam hoje?
Guardei-a porque logo em seguida ele foi assassinado. Eu não tinha
condições emocionais, para mim, a morte do Chico foi um luto que só 34 anos
depois eu consegui redimensionar nesse espectáculo. Essa é a história do Brasil
e me atravessa até hoje. Quando você vê o que existe de debates e discussões
sobre a defesa da floresta amazónica, isso tudo é fruto do nosso trabalho, é o
trabalho de Chico Mendes há 40 anos. O que ainda há protegido de áreas verdes
em forma de reservas extractivistas na Amazónia e noutros biomas brasileiros
não existiria se não fosse ele.

Essa história ficou guardada no meu inconsciente até que, durante a
pandemia — eu fiquei dois anos aqui em casa —, resolvi olhar para esse
conteúdo. As fitas tinham sido gravadas em cassetes que eu já tinha
transformado em MP4 e na pandemia comecei a estudar o conteúdo com o intuito de
o transformar em dramaturgia. Toda a fala do Chico contando a vida dele e do
movimento de defesa da Amazónia do ponto de vista dos sindicalistas e dos
trabalhadores da floresta, dos extractivistas, é a base da peça. Ele fala dos
primeiros assassinatos de sindicalistas, do Wilson Pinheiro, que morreu em
1980. Paralelamente, no palco, três mulheres da resistência contam a mesma
história de forma dramatizada — uma delas é a mulher que fez o primeiro
sindicato da Amazónia, uma mulher extraordinária, Valdiza Alencar, que saiu do
meio da floresta, andou a pé três dias e três noites, sozinha, chegou a
Brasileia, na fronteira com a Bolívia, pegou um ónibus para Rio Branco para
encontrar um homem que podia ajudar os seringueiros a formar um sindicato. Foi ela
quem empossou o Wilson Pinheiro, que foi o primeiro assassinado.
Quem está de fora ouve sempre
falar dos povos indígenas e da protecção da floresta. Mas na peça os
seringueiros são também “vozes da floresta”, apesar de terem vindo de outros
lugares, muitos deles do Nordeste, e de haver tensões entre uns e outros. Como
se joga esse equilíbrio de forças?
Não há problema em vocês não terem familiaridade com este tema. Eu faço
essa peça há três anos no Brasil e ninguém conhece Chico Mendes. Estive na
Uberlândia, e uma professora estava chocada porque as alunas dela, que estão se
formando em História, nunca tinham ouvido falar de Chico Mendes. Esse é o meu
trabalho neste momento, tornar acessível esse conhecimento e defender o legado
do Chico para que ele não se perca nessa balbúrdia que são essas novas formas
de comunicação nas redes sociais, onde tudo são bolhas.

O que tenho tentado demonstrar é que o Brasil tem uma história de
resistência em defesa da Amazónia há mais de 40 anos, com várias lideranças
importantíssimas. A Amazónia, ninguém conhece, nem nós aqui. Não existem só
indígenas. Hoje você tem mais acesso ao que estes representam e à sua cultura,
mas tem na Amazónia os extractivistas, seringueiros, catadores, tem os
ribeirinhos, que é uma população gigante de caboclos e pessoas locais que
nasceram lá e defendem os rios e florestas. São inúmeras comunidades à beira
dos rios, com acesso dificílimo a qualquer terra. Você tem os quilombolas, você
tem comunidades gigantes, com culturas gigantes e pouco conhecidas. Porque nós
temos este problema da miopia ocidental que acha que tudo começa no nosso
umbigo.
Essa grande potência que nós somos só vai manifestar-se na sua
plenitude quando percebermos que somos isso, somos indígenas, sim, caboclos,
ribeirinhos, quilombolas. Somos negros. E a floresta só está em pé ainda por
causa desses povos locais. Eles são os únicos capazes de viver lá dentro e só
vivendo lá dentro você consegue manter a floresta de pé.
Há
“centenas de milhares de Isauras, pessoas que estão sofrendo por opressão, seja
cultural, seja sexual, seja emocional”
Em relação à disputa entre os seringueiros e os indígenas, isso é um
facto, durante muitos anos havia uma briga interna, eles se tratavam como
inimigos. E foi também o Chico Mendes, com o [líder indígena] Ailton Krenak,
que criou a Aliança dos Povos da Floresta, para unir os movimentos de defesa da
floresta.
Qual é a situação hoje? Os
líderes actuais estão também sob ameaça?
A situação está ruim. No período do [Presidente Jair] Bolsonaro a
situação piorou muito porque ele armou ainda mais o povo lá no Norte, que já
era armado. Se você hoje pegar esses nichos de garimpeiros, de madeireiros, de
povos que exploram a floresta, eles estão armados até aos dentes. O que já
havia de conflito se ampliou, o que havia de mortes e assassinatos aumentou. Eu
termino o meu espectáculo com o inventário dos mortos. São mais de 400
assassinados nos últimos dez anos, segundo os dados da Pastoral da Terra.
As reservas extractivistas, que protegem áreas gigantes de floresta,
estão invadidas por gente do agronegócio. Antes, eles invadiam aliciando os
seringueiros com umas cabecinhas de gado. Agora, recentíssimo, pegaram uma
quantidade gigantesca de gado dentro da reserva extractivista Chico Mendes. Já
é uma invasão do agro.
A resistir, temos agora duas lideranças, o Raimundão, que estava lá há
40 anos, está com 92 anos, primo do Chico e personagem da minha peça e que está
ameaçado de morte. E o Júlio Barbosa, que é o presidente do comité nacional dos
seringueiros.
Foi recentemente aprovado pelo Senado aquele a que os ambientalistas
chamam PL da Devastação (projecto de lei que flexibiliza as regras para o
licenciamento ambiental no Brasil). Ainda
têm esperança de que haja um recuo?
A única esperança é o [Presidente] Lula [da Silva], é o executivo vetar
[no início de Agosto, já depois da realização desta entrevista, Lula vetou 63
dos quase 400 artigos do projecto de lei, mas os ambientalistas afirmam que a
nova legislação continua a representar um perigo]. O Lula está muito
pressionado pelo agro [agronegócio]. Eu não sei até que ponto a gente vai
conseguir pressionar o suficiente para ele ser convencido da importância
histórica de vetar isso. Isso é a destruição total. Com esse PL, vai acontecer
muito rapidamente: a devastação, a invasão para exploração de petróleo na bacia
hídrica da Amazónia, a expulsão dos povos indígenas. Isso é o fim do Brasil. E
se destruírem a Amazónia, é o fim da humanidade. A gente já está num ponto em
que a floresta mal consegue fazer o trabalho dela. A floresta vai parar de
respirar, ela vai morrer, e isso não é alarmismo.
Para terminar, não posso deixar
de falar da Escrava Isaura. Apesar de ser de 1976, a telenovela continua a ser
uma referência em muitos países e a ter impacto, até político. Como explica
isso?
A Escrava Isaura tem todos os
ingredientes de um clássico: uma pessoa muito pura e pequena sendo oprimida de
uma forma que ela não tem forças para resistir. Essa história está viva hoje na
humanidade em todas as culturas, diariamente, em qualquer lugar do mundo. Se
fizer um corte vertical na sociedade, você vai encontrar centenas de milhares
de Isauras, pessoas que estão sofrendo por opressão, seja cultural, seja
sexual, seja emocional. Geralmente, os opressores são poderosos, são
instituições, é o poder económico. Há milhões de Isauras vivas, por isso a
novela continua a repercutir e vai repercutir sempre. *********
A actriz da Escrava Isaura é activista ambiental no Brasil há décadas.
Amiga do líder assassinado Chico Mendes, fez uma peça sobre ele. Em Setembro,
Lucélia Santos vem a Lisboa, ao Festival Todos.